Paúra é medo, pavor. Essa palavra é italiana...
E porque ela está sendo mencionada? Porque existem atividades escolhidas por seres humanos em que, embora ignorado, o medo entra como um componente a mais, está sempre presente.
No meu caso essa atividade foi, por um curto período, o tráfico de substâncias execradas pela lei. Me penitencio mas me perdoo por ter entrado nessa, afinal para mim tudo era uma aventura...
Um amigo (sempre achei que fosse, e talvez fosse mesmo mas nem tanto), filho de um auditor do INSS, morador em uma rua de um bairro de classe nobre em São Paulo, comprava drogas para os amigos, de mim. Através de um conhecido se tornou meu cliente. Playboy, sempre bem vestido, simpático, aparecia esporadicamente em minha casa para comprar o que desejava. Naquele dia combinamos um encontro para às 20:30 numa praça no bairro de Moema em São Paulo para a entrega de uma mercadoria; nada demais, a quantidade que ele pedia e a que eu normalmente vendia não era de grandes proporções, no caso era 50 gr de cocaína, ou 'farinha'. Fiz a entrega e perguntei se ele poderia me dar uma carona, mas ele disse que o carro dele estava com problema. Fui embora, andei meio quarteirão, mas voltei para ajudá-lo a consertar o carro pois estava preocupado com ele...
- Não, não! Não preciso, pode ir embora! - ele me disse
- Calma, não tenho pressa, vamos ver o que está rolando, eu entendo um pouco de mecânica!
- Não, não precisa! Pode ir! - ele insistia.
- Ok, então vou indo...
Não deu dois minutos e a viatura da civil apareceu...
- MÃOS NA CABEÇA! ENCOSTEM, NA PAREDE!!
Pronto..., a merda estava feita... Nessas horas o coração sempre vai para os pés... Mas eu estava tranquilo, afinal o produto já estava nas mãos dele e, como se sabe, quem está com o flagrante segura o B.O. ('boletim de ocorrência'). Mas não foi isso o que aconteceu, o que me fez estranhar muito sobre *quem* era este meu amigo.
Houve uma revista meia boca em mim e nele, acharam o que queriam rapidinho.
- Ora, ora, ora..., de quem é isso aqui??
O Sidney, encolhido, aparentando estar constrangido, apontou o dedão para mim.
- Dele!
!!!!!!! Fiquei pasmo pela presteza e a cara de pau da deduragem! Não era o caso...; vamos conversar primeiro, ver o que poderia se fazer, mas não isso!! Enfim...
- Isso é seu?
Respondi:
- Olha..., não está comigo.
- Você que entregou à ele?
Eu, quieto, esperando a resposta que iria me livrar do enrosco.
E o broder ao meu lado virando pra lá e pra cá, olhando de um para outro, dependendo de quem estava falando; mas confirmou que eu é que tinha entregue à ele.
- Ok, onde você mora? - me pergunta um dos quatro policiais.
- No Guarapiranga.
- Vamos para lá, então.
Algemaram-me e ao carinha, nos colocaram atrás da viatura e lá fomos nós para minha casa. Minha casa em termos, na época eu tinha duas casas, eu morava em uma e a minha família em outra; eu teria que dar a outra, mas não tão rápido...
No caminho para a casa de minha família eu fui interpelando o rapaz:
- Sidney, o que você está fazendo? Para que me entregar? Com essa quantidade e com a família que tem, bem posicionada, isso não iria dar nada! O que adianta você me entregar assim e ferrar com nós dois, já que você está envolvido como comprador?
E ele lá, mudo...
Foram direto para minha casa? Não. Foram até perto, entraram numa área arborizada e escura, um matagal no qual se chegava pegando uma estradinha de terra. Chegando lá, abriram a porta de trás, e pegaram o rapaz e o levaram para conversar. Voltaram, deixaram ele, e me pegaram. Não ficou nenhum guardando o rapaz na viatura, vieram todos para cima de mim.
- Aonde está a droga? Se formos na sua casa vamos encontrá-la?
- Mas não tem nenhuma droga em casa, eu pego de outra pessoa.
- Aonde você a guarda?
- Não guardo em nenhum lugar!
O murro na boca do estômago me pegou desprevenido. Caí no chão pensando:
- "Como posso levar esse bando de animais que vivem de rapina para minha casa, com mulher e filha? O que eles farão lá?"
Não..., não dá.
Cozinhei os policiais mais um tempinho tentando pensar, mas eles insistiam em saber do "monte de drogas" que sequer imaginavam que existia. Eu poderia tê-los levado para minha casa, mas eles já estavam cientes de que podia haver outro lugar mais interessante, através do broder sentado na viatura dentro da escuridão que nos cercava. E a minha escolha veio rápida, para que eu ficaria apanhando como um trouxa sabendo que a resposta que eles queriam viria de uma forma ou outra? Pesei os contras: meu 'patrão' estava prestes a perder o que tinha guardado, eu iria ter que responder sobre isso. Que se dane, cada problema a seu tempo.
- Está bem, o que vocês querem está em outro lugar.
E lá fomos nós pelas quebradas do sertão paulistano rumo ao pote de ouro no fim do arco-íris, que ficava perto da Estrada do Campo Limpo; entraram na casa comigo ainda algemado e o garoto também, eles eu creio que mais felizes, antevendo o botim que viria para as suas mãos.
- Onde está a mercadoria?
- Na máquina de lavar roupa.
-Vamos lá então.
Tiraram minhas algemas, fui até o fundo, desmontei a parte traseira da máquina e eles ficaram radiantes com os quilos que encontraram.
- Tem mais?
- Não.
- Vamos lá dentro ver.
Enquanto isso o pessoal que estava lá dentro fuçava em gavetas e armários e fogão para ver se encontrava algo mais. Passamos pela porta do banheiro e vi o Sidney lá dentro com cara de vítima, cabisbaixo, humilhado e tristinho. Eu de cá pra lá e de lá pra cá com os tiras atrás; com a pulga atrás da orelha em relação ao Sidney...
Chegamos na sala.
- O que tem aí no sofá?
- Nada..., ué! Vocês já pegaram tudo.
- É? Levanta o sofá, então!
Peguei o sofá e levantei, olhei para debaixo dele e disse:
- Olha aí, não tem nada!
Tinha. Nem eu sabia que tinha! Hum quilo de cocaína pura embrulhada para presente, envolta em fita de plástico marrom... Fiquei pasmo, mas mantive o aprouch:
- Pode olhar, não tem nada...!
- Falou, então. - disse o aimoré, virando para ir embora da sala.
Abaixei o sofá com cara de bom rapaz e o acompanhei até a cozinha onde outro policial, com minha tesoura de aço inox de cortar frango na mão, me comunicava que ia levar a bagaça para ele; enquanto outros policiais, felizes, seguravam um maço de notas que tinham achado em algum lugar. Policial corrupto é perigoso, tanto quanto traficantes bandidos.
Nisso eu pergunto se está tudo bem, que eu ficaria por lá mesmo, que eles poderiam ir embora.
- Falou então! Boa noite para vocês!
- Não não, você vai com a gente.
- ???!! - foi-se o meu alívio...
- Você pode telefonar para o seu patrão, e ele pode vir atrás da gente.
Há horas que eles me perguntavam quem era o cara dono de tudo aquilo, mas isso eu não ia dizer nunca. Para onde iria depois? Talvez você não saiba mas caráter a pessoa nasce com ele, mesmo que se torne depois um fora da lei (políticos são um caso à parte; já os bandidos são paranóicos).
Saímos então o bando todo rumo ao desconhecido. Nessas alturas tinha aparecido um carro de um dos policiais, e eu fui colocado nele; o Sidney foi em outro.
Eu estava meio perdido..., para onde estávamos indo? Perguntei e obtive uma resposta:
- Vamos deixar você em outro lugar da cidade.
Fomos para Pinheiros. Perguntaram se eu estava com fome. Disse que não. Mesmo assim entramos numa lanchonete em Pinheiros. Escolheram uma mesa e sentamos todos, os quatro policiais e mais o Sidney. Ficaram lá conversando, fizeram os pedidos e disseram que dinheiro não era problema, pagariam com o que tinham encontrado na casa. Eu estava passado, quieto, arrasado... Vim pensando o trajeto inteiro em qual era o papel do broder naquele rolo todo; o cara até que estava meio à vontade, conversando, se não me engano até um suquinho tomou... Fiquei prestando atenção na conversa, e me parece que a situação deles era a seguinte: pegavam mercadoria de traficantes e/ou 'ativistas', e a revendiam. Faziam isso em todo o Estado de São Paulo, mas eles estavam lotados em uma delegacia de Pinheiros, vi isso na matrícula de uma viatura.
De uma coisa tenham certeza: o número de policiais que fazem isso é imenso. Todos os que estão nesse jogo sabem disso; policiais corruptos e foras da lei pertencem ao mesmo universo, usando uns aos outros em uma verdadeira simbiose.
Lá pelas quatro horas da manhã me liberaram, eu e o judazinho. Nessas alturas do campeonato já tinha certeza de que tudo tinha sido armado, mas não conseguia sentir raiva, apenas uma decepção me corroía. Por outro lado ele tinha tentado me tirar de perto dele na lá praça. Ele já tinha chamado os caras e quando eu voltei para ajudá-lo ele fez de tudo para me tirar de perto. Bem, 'de tudo' não, poderia ter sido mais claro...
Voltei para Moema, peguei o carro que estava na frente de uma padaria, e fui para casa.
Contei a história pro patrão e tudo ficou por isso mesmo. Como ele me considerava um discípulo, reiterou suas recomendações para que eu ficasse esperto:
- Como é que você sai do fim do mundo para atender a um conhecido e ganhar tão pouco sabendo que sob sua responsabilidade tinha tanto?
Ele tinha razão... Por essas, e por (muitas) outras, a minha carreira de traficante internacional não decolou...