quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Saramago, Tocando o Coração


CARTA PARA JOSEFA, MINHA AVÓ.
Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo – e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira – sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.
Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha.
Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, umas coisas que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro.
Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrijada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos – e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti – e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.
Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido.
Fico com esta culpa de que me não acusas – e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer
É isto que eu não entendo – mas a culpa não é tua.
Zé.

2 comentários:

  1. Conheço tantas D. Josefas...

    É exatamente essa a descrição.

    Minha Josefa está no céu...

    : *

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  2. Não tive, mas as conheço; sei quando vejo uma.
    Uma surpresa lhe ver aqui. Pensei em vc, estou a perto do não sei o que do Santinho aqui em Floripa. Até o dia 10 termin meu trabalho aqui.
    Levantei para fazer xixi aproveitei e comi uma banana prata, um pêssego e om Sonho de Valsa e abri o meu blog ao ver seu nome numa notificação. É como vc estivesse aqui me visitando presencialmente.
    Uia! Estava com saudades e não sabia!
    Realmente, com este trabalho, entro definitivamente para o rol dos pintores profissionais. Um trabalho grande de mais de dois meses que estou fazendo, usei tinta cara em alguns cômodos e difícil de manusear; 'masseei', consertei paredes e quinas, lixei e envernizei ao rés do chão e lá no alto da escada, enfim...
    Demora para alguém se considerar um(a) profissional...
    Saudades, querida.
    Beijo.

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